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sexta-feira, 10 de julho de 2020

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

6 poemas para ler no centenário de João Cabral de Melo Neto ...

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu ordenar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra;
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999): embaixador, cônsul e poeta brasileiro. Considerado por alguns como o melhor poeta brasileiro, foi integrante da Academia Brasileira de Letras, e sua obra mais aclamada é Morte e Vida Severina. Se vivo fosse, João Cabral teria completado 100 anos no dia 09 de Janeiro deste ano. 


(A imagem acima foi copiada do link Images Google.)

AS NUVENS

Novas biografias e edições de livros comemoram centenário de João ...

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;

são estátuas em voo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
e países de vento;

são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos.


João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999): embaixador, cônsul e poeta brasileiro. Integrante da Academia Brasileira de Letras, se vivo fosse, teria completado 100 anos no dia 09 de Janeiro deste ano. 

(A imagem acima foi copiada do link Tribuna do Norte.)

sábado, 25 de janeiro de 2020

MORTE E VIDA SEVERINA - INTRODUÇÃO


— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.


João Cabral de Melo Neto 
(1920 - 1999): embaixador, cônsul e poeta brasileiro. O poema acima é um dos melhores e mais famosos da literatura brasileira. Vale a pena ser lido. Recomendadíssimo!!!


(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

TECENDO A MANHÃ

João Cabral de Melo Neto: ícone da literatura brasileira.

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto
(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)

domingo, 19 de outubro de 2014

OS TRÊS MAL - AMADOS


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papeis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papeis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999), poeta e diplomata brasileiro. Nascido no Recife (Pernambuco), foi primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, são algumas de suas obras: Pedra do Sono, Os Três Mal-Amados, Morte e Vida Severina, A Educação Pela Pedra, Auto do Frade, Agrestes, Tecendo a Manhã. 


(A imagem acima foi copiada do link Frases Globo.com.)