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domingo, 10 de março de 2019

"BIZUS" DE DIREITO PROCESSUAL PENAL (III)

Fichamento (fragmento) da videoaula Introdução - Princípios do Processo Penal, do professor doutor Walter Nunes, disciplina Direito Processual Penal I, da UFRN, semestre 2019.1

Cesare Beccaria: filósofo que nasceu há 280 anos e cujas ideias ainda influenciam o Direito.
Outro avanço no campo das limitações ao poder de punir deu-se em virtude de concepções religiosas. A Igreja (Católica) teve grande importância e influência nessa fase. Ora, entendia-se que o poder tinha inspiração divina e a punição seria uma forma de aplacar a ira dos deuses. Que o crime seria uma afronta a esse poder dos deuses. Mesmo nesse estágio de pensamento, via-se um sistema criminal com ritos onde se empregava muito a repressão (mutilações, sacrifícios).

Com o processo de laicização (separação entre Estado e Igreja) sobrevém uma concepção política, onde se tem o entendimento de que o crime é uma afronta ao poder do soberano. Daí, o soberano exercia o poder de punir, com toda a força, como forma de reafirmar a sua autoridade, de passar a mensagem de quem “quem mandava realmente” era ele.

No livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault (1926 - 1984), por exemplo, vemos que o soberano não conhecia limites. E nessa época ainda não existia (não sendo, portanto, correto falar-se) o Direito Penal ou o Direito Processual Penal. O que existia, na verdade, eram rituais de punição. Foucault inicia seu livro descrevendo um ritual de suplício de um condenado. A arbitrariedade era a marca registrada desse período, cognominado por alguns autores como Direito Penal do Terror. Essa fase chegou, inclusive, aqui no Brasil. Na época do Império, por exemplo, os esquartejamentos eram comuns e aceitáveis – ver o caso da condenação de Tiradentes.

Nessa época não havia processo propriamente dito, o exercício do poder de punir não admitia regras. Não havia uma forma. Tudo era definido conforme o caso. Tudo se concentrava nas mãos do soberano, que delegava nas mãos de meros funcionários do poder central.

Contra esse estado de coisas, começou a surgir questionamentos influenciados pelas ideias iluministas. O grande marco desses questionamentos foi a obra Dos Delitos e Das Penas, do italiano Cesare Beccaria (1738 -1794), escrito na segunda metade do século XVIII. Com alto teor filosófico, toda a obra do mestre italiano baseia-se no contrato social de Rousseau (1712 - 1778) e na tripartição de Montesquieu (1689 - 1755), ambos iluministas.

Ora, para os iluministas, o Estado deveria servir ao cidadão, e não o contrário. Há direitos – inerentes à condição humana – que nem mesmo o Estado pode deixar de respeitá-los. E tais direitos, inerentes à condição humana, preexistem ao Estado.

Por isso se diz na Teoria Constitucional que, mesmo a chamada Assembleia Constituinte tem limites, e tais limites advêm dessa pauta de valores e direitos inerentes à condição humana. Tanto é que se diz que os direitos humanos e os direitos fundamentais, quando encartados numa Constituição, eles são apenas declarados (por isso que se diz declarações), uma vez que eles são preexistentes.

Outro ponto que denota a tamanha importância das ideias de Beccaria (revolucionárias para época) é que grande parte delas foram aproveitadas na promulgação da Constituição Norte-Americana (1787), a qual até hoje está em vigor. Existe entre as ideias de Beccaria e a Constituição dos Estados Unidos uma identidade muito grande, mormente os direitos fundamentais. Chega a gerar surpresa, mas muitos dos direitos sugeridos pelo ilustre pensador italiano na sua obra foram encartados na Constituição Americana.

Não obstante a influência aos “pais fundadores” norte-americanos, muitos iluministas se encantaram com os pensamentos de Beccaria, como Voltaire (1694 - 1778) que, inclusive, convidou o italiano a conhecer a França.

Mesmo a Constituição Brasileira de 1988, assim como a da maioria dos países com uma história democrática, sofreram influência dos ideais de Cesare Beccaria. A título de exemplos, podemos citar: Alemanha, França, Portugal, Itália. E, pasmem, alguns preceitos defendidos por Beccaria (como o direito ao silêncio) só vieram expressos no texto constitucional brasileiro com a Carta de 1988 – ou seja, cerca de 200 (duzentos) anos depois!

O princípio da presunção de não culpabilidade, embora admitido em nosso sistema, textualmente, só veio com a CF/1988. A duração razoável do processo só veio com a Emenda Constitucional 45 (EC 45), que é de 2004! Enquanto que o ilustre filósofo italiano já defendia isso há cerca de dois séculos. Isso demonstra a atualidade impressionante da obra Dos Delitos e Das Penas a qual merece e deve ser lida. 


(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)