Mais bizus para cidadãos e concurseiros de plantão, retirados do RE 637.485/RJ.
Em Sessão do dia 17 de dezembro de 2008, o Tribunal Superior
Eleitoral, ao julgar o Recurso Especial Eleitoral n. 32.507 (Rel. Min. Eros
Grau) modificou sua antiga jurisprudência, passando a adotar o seguinte
entendimento, bem resumido em trecho do voto do Ministro Carlos
Britto:
“(...) o princípio republicano está a inspirar a seguinte
interpretação basilar dos §§ 5º e 6º do art. 14 da Carta Política:
somente é possível eleger-se para o cargo de ‘prefeito
municipal’ por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas
permite-se, respeitado o prazo de desincompatibilização de 6
meses, a candidatura a ‘outro cargo’, ou seja, a mandato
legislativo, ou aos cargos de Governador de Estado ou de
Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal,
portanto”.
Na mesma ocasião, o TSE julgou o Recurso Especial Eleitoral n.
32.539 e igualmente adotou o novo entendimento, resumido na seguinte
ementa:
“RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. MUDANÇA DE
DOMICÍLIO ELEITORAL. ‘PREFEITO ITINERANTE’.
EXERCÍCIO CONSECUTIVO DE MAIS DE DOIS MANDATOS
DE CHEFIA DO EXECUTIVO EM MUNICÍPIOS DIFERENTES.
IMPOSSIBILIDADE. INDEVIDA PERPETUAÇÃO NO PODER.
OFENSA AOS §§ 5º E 6º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. NOVA JURISPRUDÊNCIA DO TSE. Não se pode,
mediante a prática de ato formalmente lícito (mudança de
domicílio eleitoral), alcançar finalidades incompatíveis com a
Constituição: a perpetuação no poder e o apoderamento de
unidades federadas para a formação de clãs políticos ou
hegemonias familiares. O princípio republicano está a inspirar a
seguinte interpretação basilar dos §§ 5º e 6º do art. 14 da Carta
Política: somente é possível eleger-se para o cargo de ‘prefeito
municipal’ por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas
permite-se, respeitado o prazo de desincompatibilização de 6
meses, a candidatura a ‘outro cargo’, ou seja, a mandato
legislativo, ou aos cargos de Governador de Estado ou de
Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal,
portanto. Nova orientação jurisprudencial do Tribunal Superior
Eleitoral, firmada no Respe 32.507”.
O novo entendimento do TSE parte do pressuposto de que a
mudança do domicílio eleitoral para o Município Y, por quem já exerceu
dois mandatos consecutivos como Prefeito do Município X, configura
fraude à regra constitucional que proíbe uma segunda reeleição (art. 14, §
5º). A prática de um ato aparentemente lícito (a mudança do domicílio
eleitoral) configuraria, em verdade, um desvio de finalidade, uma clara
burla à regra constitucional visando à monopolização do poder local.
Analisemos os fundamentos da decisão do TSE para verificar a sua consistência.
O argumento baseado nas noções de “fraude à lei” (à regra
constitucional do art. 14, § 5º), “abuso do direito” (direito de transferir o
domicílio eleitoral), “desvio de finalidade” (finalidade do direito à fixação
do domicílio eleitoral) é plenamente válido quando utilizado em casos
concretos cujas circunstâncias fáticas demostrem um estado de coisas com
as seguintes características: 1) os municípios possuem territórios
limítrofes ou muito próximos, permitindo pressupor a existência de uma
mesma microrregião eleitoral, formada por um eleitorado com
características comuns e igualmente influenciado pelos mesmos grupos
políticos atuantes nessa região; 2) os municípios têm uma origem comum,
resultantes de desmembramento, incorporação ou fusão, conforme o art.
18, § 4º, da Constituição.
Nessas hipóteses, é possível criar-se uma
presunção jurídica (juris tantum) no sentido de que o ato de transferência
do domicílio eleitoral do Município X para o Município Y, por parte do
cidadão que, por duas vezes consecutivas, exerceu o mandato de Chefe
do Poder Executivo no Município X, foi realizado em fraude à regra
constitucional do art. 14, § 5º, visando alcançar uma finalidade com ela
incompatível, isto é, a perpetuação de uma mesma pessoa no poder local.
Não obstante, o argumento não é generalizável e, dessa forma, não é
válido para outras várias situações, como as que se configuram quando os
municípios: (3) pertencem ao mesmo Estado-membro, mas são
territorialmente distantes o bastante para se pressupor que possuem
bases eleitorais e grupos políticos completamente distintos; e (4) estão
situados em diferentes Estados-membros e estão territorialmente
distantes.
Ressalte-se que tais hipóteses são plenamente possíveis, em razão do
conceito amplo de domicílio eleitoral adotado pela Justiça Eleitoral, que
permite que o cidadão possa legitimamente manter, ao longo de sua vida
política, distintos domicílios conforme mantenha vínculos econômicos ou
afetivos em diversas localidades dentro do território brasileiro. Pense-se,
por exemplo, no filho de pais separados, um (o pai) residindo no Acre e o
outro (a mãe) com domicílio residencial fixo no Rio Grande do Sul, fato que legitima o desenvolvimento simultâneo de dois fortes vínculos
domiciliares (no conceito do Direito Eleitoral) por um mesmo cidadão e,
dessa forma, torna possível a sua candidatura tanto no Acre como no Rio
Grande do Sul.
Imagine-se, igualmente, o cidadão que passou os vinte
primeiros anos de vida em sua cidade natal no interior do Ceará e depois
resolveu ir cursar a universidade e construir sua vida profissional em São
Paulo, tornando legítima a fixação de seu domicílio eleitoral tanto em um
como em outro Estado da federação. As situações são diversas e variadas
e, nesses casos, a existência de dois domicílios eleitorais não é fruto de
qualquer estratégia política de grupos ou partidos, mas um simples
resultado da contingência da vida privada individual.
O fato é que, nas hipóteses acima descritas (3 e 4), não se poderia
pressupor que a transferência de domicílio, com vistas à nova eleição em
outro município, visaria à perpetuação do mesmo poder político na
mesma microrregião eleitoral.
A antiga jurisprudência do TSE, apesar de permitir uma “terceira”
eleição em Município diverso, sempre excepcionou as hipóteses em que
os municípios envolvidos estivessem localizados numa mesma
microrregião eleitoral e fossem resultado de desmembramento,
incorporação ou fusão de municípios.
Portanto, não seria inteiramente novo, ou pelo menos não seria razão
suficiente para uma modificação radical na jurisprudência, o argumento
que constata a fraude à regra constitucional pelo ato de transferência do
domicílio eleitoral visando à perpetuação de um mesmo indivíduo ou
grupo político no poder local. O argumento que assim se constrói com
base na monopolização do poder regional ou no “apoderamento de
unidades federadas” seria inválido quando aplicado às hipóteses acima
descritas em que o cidadão transfere seu domicílio de um Município no
Acre para um Município no Rio Grande do Sul, ou do Ceará para São
Paulo.
Como o entendimento jurisprudencial que se constrói deve valer não
apenas para os casos concretos específicos que são objeto das decisões
paradigmas, mas para todos os demais casos em tese, parece certo então que devemos procurar fundamentos que sejam generalizáveis o bastante
para justificar a aplicação do entendimento fixado em casos futuros com
as mesmas características.
Fossem as hipóteses de sucessivas reeleições em municípios
pertencentes a uma mesma microrregião (hipóteses 1 e 2 acima
explicadas) as únicas circunstâncias relevantes a serem tratadas pela
jurisprudência, não haveria dúvida a respeito da plena suficiência dos
argumentos adotados pelo TSE. No entanto, como explicado, a questão
constitucional posta é mais ampla e abarca uma gama mais variada de
situações que não se circunscrevem à sucessiva eleição em municípios
vizinhos, o que faria pressupor a monopolização do poder regional ou
local, em clara violação à Constituição.
Fonte: STF - RE 637.485/RJ. Rel.: MIN. GILMAR MENDES. Plenário. 01/08/2012.
(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)