Prática comum, a negociação de
pontos pode caracterizar falsidade ideológica.
De acordo com a Associação Nacional dos Detrans (AND), em 2015, tínhamos cerca
de 60,7 milhões de motoristas habilitados no Brasil. Dada a expressividade no
número, é inegável que o número de infrações de trânsito seja relativamente
alto, em face da imprudência e imperícia nata do brasileiro em dirigir.
Desta forma, ao se cometer uma
infração de trânsito, há a autuação administrativa segundo os trâmites do Código de Trânsito Brasileiro,
que atribui pontuações às respectivas infrações. Destaco o art. 259 do CTB:
Art. 259. A cada infração
cometida são computados os seguintes números de pontos:
I - gravíssima - sete pontos;
II - grave - cinco pontos;
III - média - quatro pontos;
IV - leve - três pontos.
Por sua vez, o § 4º do
dispositivo expõe que ao condutor identificado no ato da infração, será
responsabilizado nos termos do art. 257, § 3º do CTB, que atribui ao
condutor a responsabilidade pelos danos que pratique na direção do veículo.
Portanto, vê-se que a
legislação específica atribui ao condutor que estava na direção do
veículo, isto é, aquele que efetivamente cometeu a infração, a
responsabilidade administrativa para assumir a devida
"pontuação" em sua CNH.
É neste momento que surge a
questão: posso transferir meus pontos para outra pessoa?
A resposta inicial é sim, uma
vez que outro condutor pode em seu lugar afirmar ter cometido a infração.
Todavia, como tal ato tem natureza pública, implica necessariamente numa
afirmação falsa sobre uma situação que não ocorreu, conduta esta que encontra
correspondente no art. 299 do Código Penal,
constituindo falsidade ideológica. Vejamos:
Art. 299 - Omitir, em
documento público ou particular, declaração que dele devia constar,
ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que
devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar
a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco
anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa,
se o documento é particular.
Desta forma, em que pese a
prática da transferência de pontos seja informalizada, e até corriqueira pelo
país, é perceptível a ilegalidade da conduta, que é pautada numa afirmação
inexistente, com o único intuito de livrar o verdadeiro infrator.
Aliás, destaca-se que negociar a pontuação (como na minha cidade,
Sorocaba-SP) é um risco maior para quem compra, pois determinadas
infrações levam a outras penalidades que podem gerar a cassação da CNH.
Há precedentes no judiciário
que condenaram a prática. A 4ª Câmara Criminal do TJRS manteve a condenação de
um cidadão que devolveu ao DETRAN o formulário de infração de trânsito relativa
ao seu veículo, assinado por outra pessoa. A sogra do infrator, que tinha a
carteira de habilitação vencida desde 1994, assinou o documento de apresentação
como se tivesse dirigindo o veículo no momento da infração.
Destaca-se ainda a relevância
da conduta, posto que é um documento público, com eventualidade de sanção
administrativa que, em último caso, lesa o Poder de Polícia do Estado. O
Desembargador Constantito Lisbôa de Azevedo, do caso acima, afirmou em
seu decisum:
"fazer inserir declaração
falsa atribuindo a outrem a condução do veículo, para efeito de transferência
de pontuação por infração de trânsito, é fato juridicamente relevante, uma vez
que teria como efeito a não-aplicação da sanção administrativa (pontuação) ao
verdadeiro condutor do veículo".
A melhor forma de se defender
de autuações, é a defesa prévia, com eventual recurso à Jari, e, em último
caso, ao Cetran do respectivo Estado.
Realizar a identificação de um
condutor, apenas com o fim de driblar o órgão com o fito de escapar a
penalidade, atribuindo-os a outro motorista que não cometeu a infração, além de
ilícito penal, fere a própria ética que tanto cobramos dos gestores públicos.
Aprender a lidar com os próprios atos é uma prática que merece difusão.