Fichamento (fragmento) da videoaula Introdução - Princípios do Processo Penal, do professor doutor Walter Nunes, disciplina Direito Processual Penal I, da UFRN, semestre 2019.1
Cesare Beccaria: filósofo que nasceu há 280 anos e cujas ideias ainda influenciam o Direito. |
Outro
avanço no campo das limitações ao poder de punir deu-se em virtude de
concepções religiosas. A Igreja (Católica) teve grande importância e influência
nessa fase. Ora, entendia-se que o poder tinha inspiração divina e a punição
seria uma forma de aplacar a ira dos deuses. Que o crime seria uma afronta a
esse poder dos deuses. Mesmo nesse estágio de pensamento, via-se um sistema
criminal com ritos onde se empregava muito a repressão (mutilações,
sacrifícios).
Com
o processo de laicização (separação entre Estado e Igreja) sobrevém uma
concepção política, onde se tem o entendimento de que o crime é uma afronta ao
poder do soberano. Daí, o soberano exercia o poder de punir, com toda a força,
como forma de reafirmar a sua autoridade, de passar a mensagem de quem “quem
mandava realmente” era ele.
No
livro Vigiar e Punir, de Michel
Foucault (1926 - 1984), por exemplo, vemos que o soberano não conhecia limites.
E nessa época ainda não existia (não sendo, portanto, correto falar-se) o
Direito Penal ou o Direito Processual Penal. O que existia, na verdade, eram
rituais de punição. Foucault inicia seu livro descrevendo um ritual de suplício
de um condenado. A arbitrariedade era a marca registrada desse período,
cognominado por alguns autores como Direito Penal do Terror. Essa fase chegou,
inclusive, aqui no Brasil. Na época do Império, por exemplo, os
esquartejamentos eram comuns e aceitáveis – ver o caso da condenação de
Tiradentes.
Nessa
época não havia processo propriamente dito, o exercício do poder de punir não
admitia regras. Não havia uma forma. Tudo era definido conforme o caso. Tudo se
concentrava nas mãos do soberano, que delegava nas mãos de meros funcionários
do poder central.
Contra
esse estado de coisas, começou a surgir questionamentos influenciados pelas
ideias iluministas. O grande marco desses questionamentos foi a obra Dos Delitos e Das Penas, do italiano Cesare
Beccaria (1738 -1794), escrito na segunda metade do século XVIII. Com alto teor
filosófico, toda a obra do mestre italiano baseia-se no contrato social de
Rousseau (1712 - 1778) e na tripartição de Montesquieu (1689 - 1755), ambos
iluministas.
Ora,
para os iluministas, o Estado deveria servir ao cidadão, e não o contrário. Há
direitos – inerentes à condição humana – que nem mesmo o Estado pode deixar de
respeitá-los. E tais direitos, inerentes à condição humana, preexistem ao
Estado.
Por
isso se diz na Teoria Constitucional que, mesmo a chamada Assembleia
Constituinte tem limites, e tais limites advêm dessa pauta de valores e
direitos inerentes à condição humana. Tanto é que se diz que os direitos
humanos e os direitos fundamentais, quando encartados numa Constituição, eles
são apenas declarados (por isso que se diz declarações), uma vez que eles são
preexistentes.
Outro
ponto que denota a tamanha importância das ideias de Beccaria (revolucionárias
para época) é que grande parte delas foram aproveitadas na promulgação da
Constituição Norte-Americana (1787), a qual até hoje está em vigor. Existe
entre as ideias de Beccaria e a Constituição dos Estados Unidos uma identidade
muito grande, mormente os direitos fundamentais. Chega a gerar surpresa, mas
muitos dos direitos sugeridos pelo ilustre pensador italiano na sua obra foram
encartados na Constituição Americana.
Não
obstante a influência aos “pais fundadores” norte-americanos, muitos
iluministas se encantaram com os pensamentos de Beccaria, como Voltaire (1694 -
1778) que, inclusive, convidou o italiano a conhecer a França.
Mesmo
a Constituição Brasileira de 1988, assim como a da maioria dos países com uma
história democrática, sofreram influência dos ideais de Cesare Beccaria. A
título de exemplos, podemos citar: Alemanha, França, Portugal, Itália. E,
pasmem, alguns preceitos defendidos por Beccaria (como o direito ao silêncio)
só vieram expressos no texto constitucional brasileiro com a Carta de 1988 – ou
seja, cerca de 200 (duzentos) anos depois!
O
princípio da presunção de não culpabilidade, embora admitido em nosso sistema,
textualmente, só veio com a CF/1988. A duração razoável do processo só veio com
a Emenda Constitucional 45 (EC 45), que é de 2004! Enquanto que o ilustre
filósofo italiano já defendia isso há cerca de dois séculos. Isso demonstra a
atualidade impressionante da obra Dos
Delitos e Das Penas a qual merece e deve ser lida.
(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)
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