Trecho da carta escrita por Pero Vaz de Caminha (1450 - 1500), integrante da frota de Pedro Álvares Cabral (1467-68 - 1520), encaminhada ao rei de Portugal D. Manuel I, O Venturoso (1469 - 1521), dando conta do 'achamento' de novas terras.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio - o Capitão a Ela há de enviar.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com eles alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.
Fonte: Acervo Digital.
(A imagem acima foi copiada do link Oficina de Ideias 54.)
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